Minha Querida,
é fato que há tempos não me expresso. diria que por falta de tempo, mas já não reconheço este pretexto. estou embebida de tempo. enfim... vamos romper a inércia. decidi declarar minha realidade a você.
a comida aqui é escassa, bem como uma boa companhia. aparece quando possível, mas eu mesma dou fim a ela em pouco tempo, o que me sacia por alguns instantes.
passo grande parte dos meus dias em meu quarto. paredes acinzentadas aconchegam uma cama de estrado com um colchão confortável pra assentar. escondendo um dos quatro cantos, o criado-mudo que trouxe comigo é a única beleza. de madeira branca, suporta meu caderno, meus dois lápis finitos e um porta-retrato-sem-retrato. neste apenas um vidro que, quando me agrada, acaba servindo de espelho. a janela está sempre aberta. dela vejo o mar. pedras. mar. água e mais água. de vez em quando um casal rico e apaixonado caminhando por ali, braços entrelaçados, cabeças quase que grudadas e uma paz sem fim.
algo que me deixa descritivelmente feliz é o aroma deste lugar. o cheiro de mato que vem com as brisas durante a manhã infesta o ambiente, junta-se ao singular odor das páginas velhas de meu caderno. passo por isso todas as manhãs. é este aroma que me desperta, pontualmente ao despontar do sol. o vento que chega curioso pra ler meus pensamentos e me traz essas idéias velhas e rabugentas traduzidas pelo olfato. essa sensação é mesmo recompensadora. o prêmio por ter passado a noite ali, rascunhando coisas quaisquer que pudessem entediar minha insônia.
é assim que se faz minha rotina. de noites e dias que se compensam.
é a primeira vez que revelo a você. e será a única, pois não há nada além desta realidade. é a mesma todos os dias de todos os meses de todos os anos.
sinto sua falta. mas só por alguns instantes. logo minha mão se cansa de escrever, então durmo e você volta ao meu inconsciente, de onde nunca deveria ter saído.
voltarei a me expressar caso a dor cresça demais.
hasta